A democracia desce a escada que permitiu sua ascensão desde os idos da ágora, em Atenas, onde os cidadãos exerciam seu dever de servir à polis. Em alguns momentos, travou gloriosas lutas contra os sistemas autoritários, batendo forte nos bastiões de ditadores, ganhando algumas vezes, perdendo outras.
Balançando na gangorra das Nações, adentrou no século XXI, e, nesse instante, passadas apenas duas décadas, enfrenta retrocessos, submissão às visões autoritárias, quebra de suas estacas, como as liberdades de manifestação e de associação, direitos das minorias, discriminação étnica, de raça e cor. Conflitos por todas as partes ameaçam seu ideário.
No panteão das democracias, bandeiras são trocadas. A maior democracia do mundo já não é a da Índia. Um estudo conhecido pelo nome de DeMax, feito na Alemanha, insere esse país de 1,366 bilhão de habitantes na categoria de regime híbrido, após acurada análise de 200 fatores, a partir de liberdade política, igualdade e sistema legal. A Índia e outras Nações atravessam, digamos assim, o status de desdemocratização, um passo atrás na roda civilizatória.
O estudo mostra que um grupo de 13 países sujou sua bandeira democrática em 2019, em função de perda de liberdade religiosa, repressão a protestos, violação de direitos humanos, colisão com Judiciário etc. E poucos, apenas três, teriam deixado sua posição de autocracia (governo controlado pela visão de uma só pessoa): Maldivas, República Centro-Africana e República Dominicana. A Hungria é outro exemplo de desdemocratização. Mais de 100 países, porém, sofreram perdas em suas qualidades democráticas, enquanto 69 registraram pequenos avanços.
E por que essa volta aos tempos autoritários? Um amplo e denso conjunto pode explicar. Lembrarei uns poucos. A democracia representativa vive uma crise crônica em face do arrefecimento ideológico, pasteurização partidária, fragilidade dos Parlamentos, desideologização das oposições, liberalismo, socialismo ou social-democracia sem respostas adequadas às demandas, mudança de paradigmas (luta de classes abre diálogo entre o patronato e o setor laboral), formação de novos polos de poder, organicidade social. Ou seja, face ao descrédito da política, a sociedade cria núcleos e movimentos para fazer pressão.
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A globalização, por sua vez, acirra tensões entre países. A imbricação das fronteiras, permitindo maior fluxo de mercadorias, gera como contrapartida a ascensão de um neo-nacionalismo e de movimentos em defesa das produções nacionais. À vista de todos, o Brexit, o acirramento das relações entre China e EUA etc. O populismo também ganha musculatura no tabuleiro do poder, o que expõe o dilema: como fortalecer o colchão social sem recursos apropriados? As economias cavam seu próprio buraco. Conflitos étnicos e religiosos explodem, elevando tensões e guerras entre alas.
E para onde convergem essas forças dispersas? O estudo alemão mostra que se forma uma convergência em direção ao centro do espectro político com expansão dos regimes híbridos. Um caso que conhecemos bem é o nosso. O Brasil, ao lado da Hungria, Turquia e Sérvia, aparece de forma emblemática no DeMax. A pontuação brasileira caiu 32% na última década, passando de 79,6 (numa escala de 0 a 100) em 2010 para 60,2 em 2019.
Sabemos as causas: corrupção, administrações mal conduzidas, descontroles, discriminação, tensões entre os Poderes, fisiologismo, visões radicais e conservadoras, filhotismo político nas três instâncias, ausência de reformas vitais, ataque aos meios de comunicação, fake news, negação da ciência, defesa de ditaduras, enfim, uma lista que se faz presente ao nosso cotidiano.
A desdemocratização pega até os EUA, país que deixou o nível superior das democracias, sendo hoje considerado pela Economist como uma democracia falha. Quem diria, hein? A maior democracia do mundo suja sua posição. Haverá conserto lá e aqui? Sim. Basta que o ideário democrático faça parte de nossas vivências. Pela sua grandeza territorial, por suas riquezas, pela índole ordeira de um povo alegre e acolhedor e, claro, com a diminuição do índice do PNBC (Produto Nacional Bruto da Corrupção), poderemos aparecer na galeria das grandes democracias.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato