Cultura • atualizado em 08/05/2021 às 14:46

Escrita intimista de Clarice

Clarisse Lispector (foto Editora Rocco, divulgaçao)
Clarisse Lispector (foto Editora Rocco, divulgaçao)

Clarice Lispector escrevia de forma muito peculiar: se, em alguns momentos, as anotações nasciam em fluxos contínuos, sobre folhas de caderno, em outros, realizava a chamada “escrita imediata”, ou seja, bilhetes dispersos e anotações em papéis de todos os tipos (envelopes usados, cartões de visita, folhas rasgadas, lembretes de compromissos). Em alguns momentos, quando não podia pegar em uma caneta ou lápis, pedia a alguém que estivesse por perto para rascunhar o que passava em seus pensamentos – assim, não é surpresa encontrar, em alguns fragmentos, caligrafias diversas.

“Escrevo de um modo cada vez mais pobre”, observava a autora a respeito de A Hora da Estrela. “É claro que há a tentação de fazer palavras bonitas: conheço adjetivos esplendorosos, substantivos carnudos e verbos esguios que agem agudos no ar. Mas se eu transformasse o pão dessa moça em ouro – ela não poderia mordê-lo e ficaria com ainda mais fome.”

Publicado no ano da morte da escritora, 1977, o romance é considerado um dos mais importantes de sua carreira não apenas pelas qualidades literárias, mas também por apresentar uma reflexão franca sobre a própria vida e sua atividade de escritora. A trama acompanha Macabéa, uma jovem que fugiu da miséria de sua Alagoas natal para se tornar datilógrafa no Rio de Janeiro. O romance evoca o confronto entre o escritor brasileiro moderno e a miséria da população brasileira por meio de um conflito linguístico: como é possível falar dessa miséria sem distorcê-la?

Clarice foi uma escritora cuja obra ardente, enigmática e responsável por um movimento ficcional absolutamente novo despertou paixões. Daí a expectativa de que esta reprodução dos manuscritos provoque atenção. Em seus rascunhos, é possível notar documentos curiosos – como as 13 tentativas de título testadas por ela para nomear a obra, além de vestígios da identificação da autora com seu narrador; os erros de gênero perceptíveis nos rascunhos quando usa o feminino para falar dele; fragmentos que revelam a vida pessoal da escritora, como o horário de seus compromissos e mesmo o endereço de sua casa – o do último apartamento que ocupou no Rio antes de morrer, em dezembro de 1977; e até marcas de batom.

Foi justamente este último detalhe que encantou o americano Benjamin Moser, autor de Clarice, alentada biografia de Clarice Lispector. Ao Estadão, ele disse que fez uma viagem no tempo ao folhear a edição com reprodução do original de A Hora da Estrela. “Não estão ali apenas os manuscritos do romance, mas também os últimos escritos feitos por ela”, comenta ele, que manuseou inúmeros documentos e originais para a escrita de seu livro. “Estão ali os esboços que Clarice fez enquanto estava no hospital, bilhetes escritos com uma caligrafia já muito ruim. Mas, para clariceanos como eu, a grande emoção foi se deparar com uma marca de batom, possivelmente deixado ali quando ela retirou um excesso nos lábios. É como estar fisicamente muito perto dela.”

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De fato, manuscritos, em geral, são matérias vivas, mas, no caso de A Hora da Estrela, despertam mais interesse por revelar, com detalhes, quase todo o processo de escrita. “Originais oferecem uma visão única dos bastidores da criação”, observa Jessica Nelson, fundadora e editora-geral da editora Saints Pères. “Trata-se de um mergulho íntimo no laboratório de escrita dos autores, e de uma experiência de leitura muito diferente e comovente. Por que um autor escolheu uma palavra em vez de outra? Como ele retrabalhou uma passagem que mais tarde se tornou famosa? O que havia nas versões anteriores que não existe mais na versão editada? O que podemos aprender por meio das hesitações e correções? Hoje, essas etapas do trabalho, esses documentos testemunhos, tendem a desaparecer porque os artistas usam mais o computador do que papel e caneta.”

A Saints Pères foi fundada em 2012, em Paris, buscando oferecer ao leitor a reprodução de grandes manuscritos da literatura. Logo, as pesquisas e negociações com detentores dos documentos permitiram a criação de um catálogo com originais franceses (Victor Hugo, Marcel Proust, Gustave Flaubert) e anglo-saxões (Charlotte Brontë, F. Scott Fitzgerald, Virginia Woolf).

“Nosso gatilho foi uma grande exposição na Biblioteca Nacional da França sobre rascunhos de escritores. Achamos tudo isso fascinante, e extremamente pessoal. Cada manuscrito é uma obra completa, única, que varia em conteúdo e em forma, e que revela muitos segredos através da caligrafia”, explica Jessica, cuja primeira publicação foi com os originais de Higiene do Assassino, da belga Amélie Nothomb. “Ela achou nosso projeto um pouco louco, mas, como ela aprecia particularmente o que está fora do comum, concordou em nos seguir”, diverte-se a editora que, embora não revele qual escritor em língua portuguesa será o próximo contemplado, aponta algumas preferências: José Saramago, Fernando Pessoa e José Mauro de Vasconcelos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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